Há uns anos atrás, muito antes da pandemia, tive de ir de comboio para casa na véspera de Natal. O comboio ia cheio. O revisor, provavelmente cansado e um pouco aborrecido com o turno que lhe calhara nesse ano, estava com pouca paciência. Ao verificar os bilhetes na nossa carruagem, um senhor chinês não estava sentado no sítio certo.
“O seu bilhete não é neste lugar” disse o revisor agastado. O passageiro abriu muito os olhos e disse no seu idioma qualquer coisa apontando para o bilhete e para o comboio, provavelmente salientando que tinha comprado bilhete para aquele comboio.
“O seu bilhete não é para este lugar, é noutra carruagem” – repetiu o revisor, mais devagar, mais alto e mais zangado. O passageiro arregalou os olhos e repetiu qualquer coisa em chinês, apontando para o bilhete e a carruagem.
“Meu amigo, já lhe disse: este lugar não é o seu.” – quase gritou o revisor, que começava a perder as estribeiras.
Quis ajudar e tentei falar em inglês com o passageiro. Não compreendeu. Virei-me para o revisor e disse com o ar mais amigável possível:
– Senhor revisor, acho que este senhor não o está a perceber.
– É? E o que é que acontece se vier alguém para aquele lugar?
– Não há problema, eu troco com esse passageiro. – respondi sorrindo
– Mas olhe que o lugar dele é noutra carruagem e é longe!
– Não faz mal, eu não me importo.
– Mas ele tem de aprender!
E neste momento, eu percebi: o problema não era o lugar do passageiro. E como o meu domínio do chinês (ou seja, “xié xié” e “Xiaomi”) não chegaria para explicar ao passageiro o que o revisor queria, estávamos num impasse sem grande solução à vista.
E foi nesse momento que me ocorreu o melhor argumento, o mais inabalável de todos. Ia jogar o ás de trunfo dos argumentos, superior à lógica, superior à zanga, mas será que ia resultar?
“Mas senhor revisor, é Natal…” arrisquei com voz quase sumida.
O revisor parou, mudou de expressão e concedeu sem mais demoras:
– Mas se vier alguém, a senhora muda de sítio.” e foi-se embora.
Como acontece neste tipo de situações, toda a carruagem que tinha ficado tensa, de ouvido apurado e em suspenso, suspirou de alívio. O Natal salvou a situação.
Quem nunca assistiu a um episódio deste tipo? Alguém que se vai zangar, que vai virar costas, que vai fechar uma porta (física ou metafórica) e que perante o supremo argumento “mas é Natal”, retrocede, espera um pouco, perdoa. Familiares zangados que não deixam de enviar uma mensagem ou telefonar no dia de Natal, porque afinal, é Natal. Amigos que raramente se falam aproveitam para pôr a conversa em dia, pessoas nas filas que deixam passar pais com crianças inquietas à sua frente, pequenas bondades que se fazem porque, caramba, é Natal.
O Natal é mágico. Por todos os motivos, luzes e presentes, mas sobretudo por isto. Porque é por excelência a época de paz, de perdão e de amor. Porque é uma época de gentileza e de compaixão.
Ontem agradeci a um desconhecido deixar-me entrar à sua frente num elevador porque ia com o meu filho de 2 anos que não estava a conter o entusiasmo de poder andar num elevador panorâmico; a sua reposta não foi “de nada”, foi “Feliz Natal”. Não foi um favor que ele nos fez, foi um presente que nos deu, não é tão bonito?
Sempre ouvi dizer que Natal é quando uma pessoa quiser. Por mim era Natal o ano inteiro, vocês também querem?