Quem diz que o amor que temos aos cães não merece luto, nunca teve o privilégio de conhecer este amor absoluto e incondicional.
Dizem que os cães ficam com a personalidade dos donos, e tu, mesmo sendo o cão da família, tinhas a minha personalidade. Revi-me em todos os teus defeitos que eram alguns, na tua constante procura pelos mimos todos, na tua gula (especialmente por doces e em particular as bolachas da minha mãe), na tua ciumeira das pessoas que amavas.
Tiveste sempre um focinho de cachorro: mesmo depois de viveres quase duas décadas, ainda fazias a expressão de cachorrinho que perdeu a mãe que tiveste em pequeno.
Quando foste atropelado, os meus pais esconderam o facto de mim até ao final da época de exames, porque sabiam que eu teria largado tudo em Braga para ir ter contigo e fazer-te festinhas no mesmo dia.
Ficaste sem a tua mãe em cachorro e adotaste-nos não como cão, mas como filho. Sempre que íamos de férias tu ficavas deprimido ao ponto de irmos contigo ao veterinário no primeiro ano – e nessa altura ainda o discurso era “os cães têm de ser tratados como cães” e “não se vai gastar dinheiro com o cão”. Ficamos tão preocupados que tu tivesses sido envenenado ou partido uma pata e que fosses morrer tão novo, ficamos tão atónitos de não te ver mexer (tu que nunca paravas quieto!) que fomos contigo para a clínica veterinária. Só que tu, mal entraste connosco na máquina que nos tinha levado para longe de ti, mal te tratamos como um de nós de novo, ficaste melhor de imediato. A veterinária disse que tu estavas era muito triste e aos poucos recuperaste.
Quando eras mais novo tinhas o dom de conseguir saltar para cima de qualquer coisa, um cão arraçado de gato. A tua devoção por nós era tão grande que quando ficavas lá fora, saltavas para cima do que encontrasses para poderes espreitar pela janela a tua família. Até fazias equilibrismo em estendais da roupa só para poderes ter algum vislumbre dos teus.
Eras engraçado, esperto e inventivo. Uma vez fizeste um buraco numa manta para poderes enfiar lá a cabeça e usar como um poncho, de modo estares quente mesmo quando te mexias e a poderes andar com ela. E eras o cão de circo perfeito: eu conseguia ensinar-te todos os truques de que me lembrava.
Nunca foste um cão bem integrado com os outros. Foste rejeitado pelos outros cães da casa quando a tua mãe morreu e quando tiveste a oportunidade de mandar eras muito mauzinho para o pobre do teu irmão Scot que já não se conseguia defender com a velhice.
Onde estavas bem era connosco, no meu colo se possível. Nunca deixaste de preferir o espaço das minhas pernas quando me sentava “à chinês” no chão, esconder o focinho no meu cotovelo ou na minha axila.
Eras um medricas de primeira. Gostavas de ir à rua, mas morrias de medo dos outros cães e não gostavas de andar longe de casa ou ir para sítios desconhecidos. Tínhamos sempre de insistir contigo, mas se nós fossemos, tu querias ir também, por isso na vez seguinte, lá estavas pronto para ir atrás de nós e especialmente do Scot que era o cão da minha irmã, o cão aventureiro.
A tua felicidade eram mimos e comida e este é o retrato da tua velhice, quando finalmente te tornaste filho único e o dono da casa, entrando na cozinha independentemente da hora, abrindo a porta mesmo quando ela estava fechada, debaixo da cadeira da minha mãe onde recebeste festinhas com os pés, com estatuto suficiente para protestar de viva voz sempre que se abria a lata das bolachas e não te era dado nada, ou quando não sobrava comida às refeições.
Passei a ir a casa quando os meus pais iam de férias, não porque não houvesse quem te cuidasse, mas porque não te queria deixar sozinho. Nessas noites trazia-te à socapa para a sala grande, para poderes aproveitar o sofá proibido e adormeceres comigo.
Numa das últimas ceias de natal que passamos com a minha prima, deixamos-te entrar às escondidas para a sala onde estávamos as 3 a dormir e não deu bronca por pouco. Escondemos-te debaixo dos cobertores e tentamos disfarçar. Tu começaste a mexer debaixo dos cobertores e quase que fomos apanhadas. Essa tropelia foi e será sempre uma das nossas preferidas.
No fim, tive a sorte de me poder despedir de ti, antes de partires para a tua grande viagem, para a qual vais claramente contrariado (não conheces o sítio, vais sem nós, na cozinha dos meus pais é que está a tua almofada e a lata das bolachas…), mas as dores estão a tornar insuportável ficares cá. O teu focinho está marcado pelas tuas lágrimas e já não comes nem bebes.
Vai haver sempre um buraco no meu coração no sítio que tu ocupas. Tu foste o melhor cão, o meu cão.
Adormeceste comigo e com a minha mãe, com festinhas, palavras mansas, amor e tranquilidade, sem dores. Um último momento de paz e felicidade.
Vamos ter sempre saudades tuas e tenho a certeza que hei de ter sempre lágrimas para a tua falta e sorrisos para as tuas memórias.
Havemos de nos reencontrar.
Até já, Spi-cão.